Opinião. «Para lá do funcionalismo da leitura e da escrita»

 

Ser um bom escutador é condição essencial para se ser um bom leitor / escritor. Mas ler e escrever em situações funcionais tem muito que se lhe diga. Infelizmente para a maioria dos educadores e pais, a ansiedade de ver a criança a ler é a primeira barreira colocada, pois para os “crescidos”, ouvir uma leitura relativamente fluida de um texto é muitas vezes vista como o degustar de uma pequena vitória pessoal, mas egoísta… às vezes uma vaidade que não olha para baixo.

Mas tenho uma opinião muito pessoal acerca desta temática. E começo por afirmar que a aprendizagem da leitura e da escrita, é tudo menos um processo linear. Na verdade, existem vários fatores e circunstâncias que exercem influência direta no desenvolvimento destas capacidades. Um facto que considero fulcral é a necessidade interna da criança em atribuir significados às coisas por via da receção de uma comunicação assertiva e sedutora do mediador, despertando assim o ímpeto leitor da descoberta. A vontade emerge quase sempre pela rede afetiva.

Como contador de histórias e professor, aprendi que é fundamental dar vida aos conteúdos moribundos, que para a maioria dos alunos já nasceram mortos. O ensino necessita de proximidade, de tempo e de liberdade. Falar das coisas de várias perspetivas e até promover a “disparatecnia”. Sim, os disparates também têm a sua função no diálogo do crescimento. São imprescindíveis no contexto da criatividade e da imaginação. São as emoções que, ora nos puxam ora nos elevam, ora nos traem ora nos guiam, ora nos motivam ora nos ensinam.

Tenho sentido ao longo destas duas décadas de ensino que, do estado ou momento emocional da criança, irá depender em muito o tal “projeto pessoal de leitor / escritor”.

Estabelecer uma relação afetiva com os livros, com as histórias, com as narrativas, com os conteúdos, com as palavas… é meio caminho andado para este propósito enquanto educadores. Mas será que esta responsabilidade, a de fazer crescer crianças leitoras e consequentemente escritoras, tem sido bem conduzido? No meu ponto de vista a resposta é um rotundo NÃO.

Em casa, os pais, em grande percentagem, continuam a não estar habilitados para esta tarefa (quer pela indisponibilidade, quer pelo desconhecimento, quer pela falta de tempo, quer pela falta de vontade ou interesse e sobretudo por alguma insensibilidade e apatia à necessidade dos filhos; em suma, por padecerem também do tal ímpeto leitor).

Na escola, todos os professores estão habilitados e predispostos para ensinar, mas deixo aqui a pergunta de um milhão de euros: estarão predispostos para romperem com o VELHO PARADIGMA ASFIXIANTE que é PRESTAR CONTAS AO VELHO CURRÍCULO, aos EXAMES DITADORES e às ESTATÍSTICAS MESQUINHAS DAS REUNIÕES DE AVALIAÇÃO?? Talvez não...

Hoje em dia sabemos que não podemos depender do fator “casa”, mas uma aposta errada no fator “escola” também pode não estar a surtir o efeito tão desejado. É preciso cativar, mas antes disso, APRENDER A CATIVAR (comunicação assertiva).

Fazem falta adultos/educadores “desavergonhados” no bom sentido; emocionantes, que estalem o verniz às emoções, que contem histórias ou as suas histórias, soltos, desprendidos. Adultos entusiastas que vibrem com o que ensinam e que contagiem os “pequenos” com esse entusiasmo. Precisam-se professores que gesticulem como sinaleiros e que saboreiem as palavras com gula quando as dizem. Adultos que comuniquem com mais músculos da face. Professores que deem vida às personagens, aos conteúdos e às vezes, que “deem a vida” por eles como num palco.

Culpam-se demasiado os alunos, as crianças. São julgados sem a mínima paciência, sem conhecerem os “réus”; as suas motivações, os seus anseios. Aferem-se ao pormenor as suas incapacidades através de rótulos pré-definidos e pré-concebidos pelos “especialistas do tempo” nos gabinetes de psicologia ou pedopsiquiatria, que cronometram o crescimento à milésima, apontando sem piedade nem bom senso, qualquer milésima de atraso de um cérebro ainda em desenvolvimento. É claro que isto é a minha visão muito visceral do nosso país leitor, sem papas na língua, mas não me consigo alienar da panóplia de erros que se vão cristalizando atrás de outros tantos erros. Talvez se tenham esquecido que antes de existir uma criança leitora e literária (do ponto de vista da descodificação e interpretação das palavras), DEVE EXISTIR UMA CRIANÇA com mais tempo para ler o mundo e os seus símbolos através dos sentidos da alma; que saiba interpretar a vida para além dos textos; que saiba catalogar aquilo que as emoções recolheram; que se possa autoconstruir sem pressões. Tudo o resto vem por acréscimo, naturalmente, sem forçar o que já está plantado e que irá florescer, pois o aspirante a “tratador de palavras” estará apto a fazer uma boa leitura do que a rodeia, sem partir erraticamente do zero, do “b e a bá”. A escola também pode fazer esse papel, sabiam?

Rui Beato



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